musica con sentido e sentimiento

segunda-feira, outubro 27, 2008

Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK),

por Juliana Kroeger e Fernando Evangelista (2007)
Fotos: Matt Corner

Um nome proibido. Durante o ano todo, seu nome é sussurrado nas reuniões clandestinas e nas esquinas escuras. Ninguém pode carregar sua foto, mesmo que seja uma 3 x 4 escondida lá no fundo da carteira. É uma imagem proibida, como é proibido carregar a bandeira com as cores verde, amarela e vermelha. Essas cores juntas simbolizam o partido que ele lidera e o partido está proibido. Se alguém, por azar do destino, for apanhado pela polícia ou pelo exército desrespeitando essas normas, será preso.

Mas existe um dia, apenas um dia no ano, em que a imagem e o nome de Abdullah Ocalan são celebrados em alta voz. É 21 de março, quando os curdos – a maior etnia sem Estado no mundo, estimada em 25 milhões de pessoas – comemoram o Newroz, o Ano Novo. Os curdos vivem em uma região riquíssima em petróleo, localizada entre as fronteiras da Turquia, Iraque, Irã e Síria. Abdullah Ocalan, o Apo, o nome proibido, a imagem proibida, é o líder do povo curdo na Turquia.

Ocalan é o “comandante” do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), fundado na década de 70 e que logo se tornaria a mais conhecida representação política e militar do Curdistão. Em 1984, o partido inicia um movimento separatista e entra em guerra contra o governo de Ancara. Conforme relatório da Human Rights Watch, durante as duas décadas de conflito o exército turco não fez distinção entre civis e militantes armados, destruindo 3.000 vilarejos e deixando cerca de 100.000 famílias sem casa. Desde então, o confl ito já matou mais de 37.000 pessoas.

Em 1999, Ocalan foi condenado à morte pela Justiça, acusado de “traição e separatismo”. Porém, antes que fosse executado, a Turquia aboliu a pena capital, como parte de uma série de reformas para se aproximar das normas da União Européia. Ocalan cumpre prisão perpétua na penitenciária da ilha de Imrali, próxima a Istambul. A condenação rendeu críticas da comunidade internacional, a ponto de o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, com sede na França, afirmar que o julgamento teria sido injusto por “falta de independência e de imparcialidade”, indicando a necessidade de revisão do processo, coisa que nunca aconteceu. Detalhe: Ocalan é o único detento na ilha de Imrali.

O motivo da luta dos curdos parece simples. Na Turquia, com algumas concessões aqui e ali, sua língua é proibida nos espaços públicos estatais, como escolas, hospitais e prisões. As músicas são censuradas. Parte de sua representação política vive na ilegalidade. Detenções arbitrárias, desaparecimentos e execuções são bastante comuns, tão comuns que já não despertam a atenção do resto do mundo. Segundo a organização Humans Rights Association, uma das mais importantes da Turquia, apenas no ano passado 708 pessoas foram torturadas e 67 desapareceram. Nesse mesmo período, 344 morreram em combate, entre militares e rebeldes.

Fogueira
A cidade de Diyarbakir, no sudeste da Turquia, é a mais importante do Curdistão. É aqui, a 200 quilômetros da fronteira com o Iraque, às margens do rio Tigre, que se reúne o maior número de curdos para comemorar o Ano Novo, no equinócio da primavera. É dia de festa, mas o conflito cotidiano está na paisagem: milhares de militares turcos estão perfilados às margens da estrada que leva ao evento. Tanques, tropas de choque, tropas de elite. Fuzis, metralhadoras, bombas de gás. Oficialmente, a guerra terminou. O PKK, seguindo orientação de Ocalan, depôs as armas no final do ano passado, pela quinta vez. O primeiro ministro turco Recep Tayyip Erdogan afi rmou às agências internacionais que não se pode fazer trégua com organizações terroristas, “cessar-fogo acontece entre países”. Tempos atrás, o governo dissera que a guerra só terminaria quando os membros do PKK tivessem sido todos rendidos ou eliminados. Acredita-se que o grupo, considerado terrorista pelos Estados Unidos, União Européia e Nações Unidas, tenha mais de 5.000 integrantes, vivendo principalmente no norte do Iraque.

Antes de entrar no centro de eventos, grande parque a céu aberto, os participantes do Newroz são revistados pelos militares. As pessoas que estão na fila, todas elas, nasceram na Turquia e, ao mesmo tempo, pertencem à etnia curda. Muitas ainda sonham com a grande pátria do Curdistão, mas outras, talvez a maioria, depois de tanta guerra e de tantas derrotas consecutivas, querem apenas que sua identidade e seus direitos sejam reconhecidos. Querem continuar vivendo neste país sem, entretanto, abrir mão de sua cultura.

A festa de Ano Novo começa às 10 da manhã. Os músicos se apresentam num palco de quase 50 metros de boca e tudo lembra um mega-show de rock. A diferença é que a motivação é política e não há bebida alcoólica: mais de 90 por cento dos curdos são mulçumanos, a maioria sunita. As mulheres usam túnicas brancas cobertas por tecidos e véus de diversas cores, alguns bordados, outros com lantejoulas. De braços dados, fazem uma espécie de cordão de isolamento entre o palco e o público. Na frente delas, apenas as crianças – uma infinidade – com o mesmo figurino. Os homens usam calças largas até os joelhos e apertadas nas canelas, as salvars. Todos dançam. Duas grandes fogueiras completam o cenário. As músicas são cantadas com força, como se essa gente quisesse compensar um ano inteiro de silêncio.

Apesar da ostensiva revista militar, muitos conseguem entrar com os símbolos proibidos – bandeiras, lenços e faixas de todos as dimensões. As cores verde, amarela e vermelha vão aparecendo aqui e ali. No telhado de uma fábrica próxima, dezenas de jovens estendem uma faixa com fotos de presos e desaparecidos. Alguém, rosto coberto por um kaffieh, tradicional lenço palestino, ergue no meio do povo um retrato de Ocalan. Outra pessoa, do outro lado, faz a mesma coisa e mais um outro e de repente a imagem está por todos os lados. O público amarra fotografias do líder curdo em balões de gás e a imagem ganha o céu. Um avião militar sobrevoa o local.



Abdurrahman e Reseat: contam a história do seu povo na Turquia
Milhões de pessoas – em várias cidades do Curdistão – participam do Newroz. Só em Diyarbakir são 500.000. No meio da multidão estão os primos Abdurrahman e Resat, ambos de 11 anos. Eles, anfitriões de improviso, fazem – em inglês – um resumo da história da Turquia. Dizem que no país, ponte entre a Europa e a Ásia, vivem 70 milhões de pessoas, sendo que 12 milhões são curdos. Falam da Primeira Guerra Mundial e da dissolução do Império Otomano, falam de Mustafá Kemal, o Ataturk, primeiro presidente da Turquia. Ataturk, “o pai dos turcos”, é uma imagem onipresente no país, a começar por todas as cédulas de dinheiro. É nome de praça, aeroporto, avenidas, ruas, pontes, escolas e hospitais.

Foi ele quem começou a aproximação com o Ocidente, introduzindo o alfabeto latino, a igualdade de gênero e substituindo as cortes islâmicas por tribunais civis.

Para os turcos, Ataturk é o grande herói nacional. Mas, para os curdos, de uma maneira geral, ele é um líder militar e político que quis criar um Estado homogêneo, principal álibi para a repressão contra todas as minorias. Abdurrahman e Resat falam da fogueira, o grande símbolo do Newroz. “Peguem as canetas e os bloquinhos porque essa sim é uma história importante”, diz Resat, um dos meninos. Conselho aceito, o “guia” continua: “A fogueira retoma uma história de 2.600 anos. Nesta terra vivia um operário curdo que, para defender o seu filho, derrotou um tirano. Quando ele venceu a luta, fez uma imensa fogueira para avisar ao resto do povo que os dias de escuridão e medo tinham terminado”.

As preparações para a festa deste ano ganharam uma dose extra de tensão. No início de março, advogados de Ocalan, em entrevista coletiva na Itália, apresentaram evidências de que ele estaria sendo envenenado na prisão. A denúncia, feita com base na análise de fios de cabelo, mostra que o nível de estrôncio e cromo no organismo estaria muito acima do normal, indicando uma “intoxicação crônica”. Mahmut Sakar, um dos advogados, afirma que ele corre risco de morte e que vive sob tortura. “Nada disso é verdade”, rebate o governo turco, “o prisioneiro está bem e faz check-ups regulares.”

A festa acaba às 4 da tarde. Bandeiras e imagens de Ocalan são cuidadosamente escondidas. E acontece o previsto: provocações entre curdos e militares. Pedras de um lado, balas de borracha de outro. Trinta e duas pessoas são presas. Depois, tudo volta ao normal. Rotina. Tanques do exército cruzam as esquinas. Um soldado, metralhadora em punho, dedo no gatilho, observa o movimento.

Guerra ao terror
A intenção da Turquia em ingressar na União Européia parecia ser um trunfo nas mãos do povo curdo. Desde 1999, quando o Conselho Europeu de Helsinque afirmou que o país poderia se candidatar à adesão, teve início uma série de reformas. Mas as repetidas recusas à integração mexeram com o orgulho do país e fizeram com que o sentimento nacionalista turco, sempre tão presente, aumentasse ainda mais nos últimos tempos. Além disso, qualquer tentativa de avanço em direção à efetividade dos direitos humanos esbarra no artigo 301 do Código Penal, que considera crime qualquer “insulto à identidade turca”. Poucas pessoas acreditam que as eleições deste ano, para presidente e primeiro-ministro, sejam capazes de mudar esse cenário.

O presidente da Human Rights Association, Bengi Yildiz, 42 anos, explica que o artigo 301, utilizado como subterfúgio para todo tipo de arbitrariedade, pune qualquer pessoa que critique as instituições do Estado, incluindo as forças de segurança. “O problema de fundo”, revela Bengi, “é que os verdadeiros donos do poder, aqui, são os militares.” Para Heinz Kramer, professor de relações internacionais, citado em reportagem publicada no jornal Le Monde Diplomatique, “o comando militar constitui um centro de decisão autônomo que escapa amplamente ao controle civil”.

O vencedor do Nobel de Literatura do ano passado, o turco Orhan Pamuk, foi processado com base no artigo 301. Em entrevista a um jornal suíço, ele disse que 1 milhão de armênios teriam sido mortos, além de 30.000 curdos, em terras turcas.


Bengi Yildiz: problema são os militares turcos

Por escrever artigos sobre esses mesmos fatos, o jornalista turco, de origem armênia, Hrant Dink, de 52 anos, foi assassinado a tiros em Istambul em janeiro deste ano. O principal suspeito do crime é um garoto de 17 anos, ligado a uma organização ultranacionalista. Ao ser questionado sobre o motivo do crime, afirmou: “Hrant insultou a identidade turca”.

“O artigo“ continua o presidente da Human Rights Association, “nos deixa sempre com as mãos atadas.” E com as mãos atadas ficam também os partidos pró-curdos. O Partido Social-Democrata, o DTP, já teve quatrocentos integrantes presos, acusados, quase sempre, de violar o artigo 301. Na sede do partido em Batman, cidade ao lado de Diyarbakir, há na parede doze fotos de membros do partido. Todos foram assassinados ou estão desaparecidos. O presidente e o vice estão presos. O motivo? A polícia descobriu um retrato de Ocalan exposto na sede. O retrato, pequeno, havia sido recortado de um jornal. Tempos atrás, Cihan Sincar, o prefeito de Kiziltepe, perto da fronteira com a Síria, foi condenado a seis meses de prisão por ter falado em curdo durante um comício na campanha eleitoral de 2004.

Apesar desses fatos recorrentes, Bengi Yildiz reconhece que algumas coisas têm mudado. “Se um curdo fosse preso há quatro, cinco anos, a família não podia nem questionar o seu desaparecimento. Não era possível visitá-lo e muito dificilmente contratar advogados. Hoje é diferente.” E isso é fruto da pressão da União Européia? Ele sorri: “A União Européia tem a atenção voltada para as questões econômicas, os desrespeitos aos direitos humanos são vistos apenas como um incômodo detalhe”.

Diante desse cenário, solo fértil para o fanatismo, surge em 2004 o grupo terrorista Falcões da Liberdade do Curdistão (TAK). A organização pró-curda tem realizado atentados por toda a Turquia, centrando suas ações em locais turísticos. Esse tipo de violência serve de pretexto para o aumento da repressão, fortalecendo ainda mais o Estado militar. Acredita-se que os Falcões sejam dissidentes do PKK, porque o grupo aparece no mesmo ano em que o partido de Ocalan anuncia o primeiro cessar-fogo.

O que pode ser, de fato, um trunfo nas mãos dos curdos da Turquia é a guerra no Iraque. A ocupação americana fortaleceu ainda mais o poder que os curdos iraquianos detinham desde 1991, quando passaram a controlar uma região autônoma no norte do país. Ano passado, diante da guerra civil entre xiitas e sunitas, eles formaram o Governo Regional do Curdistão (KRG), com participação de todas as três províncias. Essa região, hoje, é a mais segura do Iraque, conforme relato do jornalista Zuhair Al Jezairy, diretor da agência de notícia Aswat al Iraq: “A cidade de Sulymania (norte) e Bagdá parecem fazer parte de países e épocas diferentes”. O norte não vive o caos. Os curdos iraquianos nunca estiveram tão fortes. Evidentemente, tal situação não é vista com bons olhos por Ancara.

Por isso, parece óbvio que a afirmação do comandante das Forças Armadas da Turquia, Yasar Buyukanit, no dia 12 de abril, menos de um mês depois do Newroz, não tenha sido dita ao acaso. Foi um aviso, claro e direto: “Nós precisamos realizar uma operação militar no norte do Iraque”. Buyukanit referia-se aos rebeldes curdos do PKK que atuam no país vizinho e que, segundo as autoridades turcas, apesar do anunciado cessar-fogo, ainda usam a região como um campo de treinamento, onde organizam atentados e ações separatistas.

Uma operação militar da Turquia no norte do Iraque pode ser a gota de água que falta para espalhar a guerra por toda a região. A resposta das autoridades iraquianas, já no dia seguinte, deu o tom da gravidade da situação: “Não permitiremos que ninguém interfira em nossos assuntos”, avisou o presidente do Parlamento iraquiano, Mahmoud al-Mashadan, “e cortaremos a mão de quem se intrometer, se não for hoje, será amanhã”.

A Turquia também está com os olhos voltados para a cidade iraquiana de Kirkuk, a 250 quilômetros de Bagdá. Em novembro será realizado um referendo para decidir se a cidade, a quarta maior do país, deve ou não fazer parte da região autônoma do Curdistão. Kirkuk, com uma população formada principalmente por árabes, turcomanos e curdos, é o grande pólo petroleiro da região, com reservas estimadas em 16 bilhões de barris. Além disso, ela é a “ponte” que liga os oleodutos do Iraque com o porto de Ceyhan, na Turquia. O presidente do Governo Regional do Curdistão, Massoud Barzani, em meio à polêmica provocada pela declaração do chefe das forças armadas, asseverou: “Se os turcos interferirem em nossos negócios em Kirkuk, seremos obrigados a interferir nos negócios deles em Diyarbakir”.

A ligação dos curdos iraquianos com Washington não impede a parceria de Ancara com os Estados Unidos. Em 1997, por exemplo, segundo Noam Chomsky no livro O Império Americano – Hegemonia ou Sobrevivência, o envio de armas dos EUA à Turquia superou o total de armamento enviado durante toda a Guerra Fria. Todo esse equipamento, diz o autor, teria sido usado na repressão contra o povo curdo. Com a escalada das atrocidades, a Turquia tornou-se, naquele período, o maior receptor de armas dos EUA, à frente de Israel e Egito.

Há muitos anos, os curdos da Turquia são vítimas do que hoje se costuma chamar de “Guerra ao Terror”. E a guerra ao terror, nesse caso, se dá em nome da unidade nacional. Ela exige obediência. Qualquer um que não seguir as regras será acusado de traição ou de terrorismo. Apesar disso, entre julho de 2005 e maio de 2006, uma campanha recolheu assinaturas para afirmar à comunidade internacional que – mesmo que o governo não permita e meio mundo o considere um criminoso – Ocalan continua sendo o líder do povo curdo. O documento, simples, dizia: “Eu, fulano de tal, reconheço Abdullah Ocalan como representante político no Curdistão”. Foram mais de 3 milhões de assinaturas. Nome e sobrenome registrados, a despeito das conseqüências. Um ato de coragem, como daquele operário que enfrentou o tirano há 2.600 anos.

fonte (Da revista caros amigos)

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